Notas sobre Mudanças Regulatórias Ineficazes
Prof. Dr. Jair dos Santos Jr
Mestre e Doutor – UNICAMP
Diretor Administrativo-Financeiro ABED (2023-2027)
Sócio da empresa SANTOS JR Consultoria
O Ministro da Educação Camilo Santana abriu em 2023 o debate suspeitoso sobre a qualidade da oferta da educação superior na modalidade a distância. Aproveitando-se de sobrestamentos já existentes para cursos da área de saúde e Direito, supostamente motivado pelo crescimento de matrículas e ingressos na modalidade EAD, o Ministro abriu para consulta pública a possibilidade de instaurar um novo ciclo de restrição de oferta da educação superior.
O primeiro equívoco do Ministro foi acreditar que o ENADE comprovaria a oferta de cursos EAD sem qualidade, algo que vários artigos e estudos já evidenciaram não ser verdade. O segundo, evidenciado por sua equipe na redação da consulta pública, foi acreditar que a majoração do Conceito Institucional, resultante da Avaliação INEP aos Processos de Credenciamento e Recredenciamento de IES, especificamente para a oferta da modalidade EAD (CI-EAD), deveria ser majorado para conceito quatro, numa escala de um a cinco. O terceiro equívoco, o mais grave de todos, foi correlacionar oferta de curso presencial com maior segurança de qualidade. Por este, já há o prenúncio claro de que todas as licenciaturas e outros dezesseis cursos, em geral, área da saúde e Direito, serão simplesmente vetados para a modalidade EAD.
Apontaremos a seguir questões que entendemos decisivas para compreensão de que tanto o diagnóstico está equivocado quanto a eficácia das medidas é questionável. Para tanto, não nos prenderemos aos formalismos das citações das peças normativas ou mesmo discorreremos com o armazém de dados que temos disponíveis. O que faremos é um conjunto conciso de anotações que permitam ao leitor que já tem conhecimentos prévios formar seu juízo e aquele que inicia a compreensão do tema terá dicas importantes de por onde trilhar seus estudos.
Sobre a majoração do CI-EAD para fins de credenciamento e recredenciamento, sua eficácia para a qualidade dos cursos não é verdadeira. O Conceito Institucional é resultante da Avaliação INEP com base no Instrumento de Avaliação Institucional, que possui uma versão para fins de credenciamento e outra para fins de recredenciamento, ainda que sejam muito similares. Este Instrumento possui, dentre um total de 45 indicadores, um único que trata de metodologia e didática. Apenas para se ter uma ideia, são 18 indicadores para infraestrutura. Nem é preciso dizer que prédio, equipamentos de informática e mobiliário não ensinam, mas são as estratégias didático-metodológicas e os profissionair da educação que o fazem. Mas há outro contexto da Avaliação INEP que precisa ser considerado com precaução. Desde a pandemia o INEP instituiu a Avaliação Virtual in loco, algo que para além da contradição do próprio nome, se mostrou um procedimento falho para o registro fiel das condições de oferta de uma IES. As instituições passavam cinco dias com seus avaliadores, numa imersão destes em sua realidade regional, conhecendo as pessoas, os lugares e a cultura institucional. Digo cinco dias porque o primeiro era para a chegada, que sempre envolvia a recepção no aeroporto, translado, jantar e almoço. Depois tínhamos três dias de trabalhos intensos, visitas, reuniões, entrevistas, sempre intercalados com almoço, jantar e momento do café, oportunidades de aprofundar a imersão. Por último, o dia de partida, similar ao dia da chegada. Percebe-se claramente que eram oportunidades únicas para IES e avaliadores num processo de profundo conhecimento das reais condições de oferta. Com a Avaliação Virtual, tudo isto foi substituído por aproximadamente 15 horas de videoconferências, cansativas, desgastantes e de conversas protocolares, pouco espontâneas e ensaiadas pelas duas partes envolvidas. A visita às instalações é o pior de tudo, três horas em que os avaliadores ficam na frente de seus computadores assistindo um representante da IES caminhando com seu celular pelas dependências, mostrando salas, mobiliários, laboratórios, quase sempre sem sequer abrir um único armário ou ver a realização de um experimento. Exagerando um pouco, a Avaliação Virtual gera a necessidade de que a IES tenha a competência de mostrar o seu cenário, não as condições didáticas de oferta.
Ainda sobre este momento da avaliação das IES, é preciso enfrentar a dura realidade de que os avaliadores precisam passar por procedimentos de treinamento que os dotem dos qualitativos necessários para a atividade. Aqueles que acompanham as avaliações, principalmente os Procuradores Institucionais, sabem das dificuldades quando se recebe um Relatório INEP, resultante destas Avaliações virtuais. As impugnações aos Relatórios se avolumam e, não raro, são instauradas pela Secretaria de Regulação da Educação Superior (SERES) e pela própria IES. Ou seja, os Relatórios são objeto de questionamentos e dúvidas pelo requerente e por quem decidirá pelo requerido. O processo está falho, não há como negar, e esta dura realidade precisa ser enfrentada.
Portanto, nem o Instrumento de Avalição, nem o método de avaliação estão preparados para a eficácia de apuração da qualidade de oferta que o Ministro da Educação deseja. O CI-EAD não é a solução para a qualidade da oferta.
A consulta pública realizada pelo Ministério da Educação também indica que a restrição da oferta da modalidade EAD considerará as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação como parâmetro seletivo de onde se pode e onde não se pode atuar. Pois aqui reside outro equívoco, as DCNs têm várias limitações para esta aplicação. A primeira e mais óbvia, DCN não foi pensada para separar oferta de modalidade. Aliás, entendemos que nem devam cumprir com este papel, pois se trata de uma prerrogativa de órgão regulador, não de comissão de especialistas de cursos. Outra limitação para uso das DCNs, sua abrangência. O comparativo entre a quantidade de cursos pela classificação CINE Brasil e aqueles com DCN por si só deveria ser suficiente para qualquer órgão regulador que não podem alcançar esta função. É quase como se o Ministério estivesse separando entre uma elite de cursos de graduação com DCN e o resto das profissões existentes. A propósito, neste “resto” estarão todos os cursos superiores de tecnologia, fundamentais para a qualificação de nível superior em nosso país. E por fim, apenas para este conjunto de notas, não porque o assunto esteja esgotado, quase todas as DCNs foram aprovadas antes da pandemia. Ou seja, elas simplesmente desconsideram, pelo seu contexto histórico, o principal evento da sociedade contemporânea, que alterou as relações sociais, a comunicação, as relações de trabalho, enfim, nossa visão de mundo e forma de se relacionar com ele. Pior do que isto, as DCNs, com raríssimas exceções, não têm a preocupação em indicar, dos elementos do projeto pedagógico, quais devem ser estritamente presenciais, quais podem ser na modalidade EAD e, muito menos, quando podem ser realizados de forma híbrida. Portanto, utilizar as cargas horárias descritas nas DCNs para definição de curso que pode ou não ser ofertado na modalidade EAD é uma ilação que, certamente quem atuou efetivamente na sua redação, não imaginou que seria feita. Não há, pelos argumentos sintetizados aqui, e outros que cada estudioso possa identificar, justificativa plausível para que as DCNs sejam utilizadas como critério de oferta de modalidade.
Aliás, curioso é que, nesse debate, os cursos superiores de tecnologia sequer são mencionados. Ou seja, ainda que fôssemos considerar correta a separação de cursos entre modalidade, o fato de não se considerar os tecnólogos em nível superior nos dá a suspeita que o caminho escolhido foi o fácil: bacharelado e licenciatura com DCN, deixando aqueles que não têm, seja por indefinição por parte do Conselho Nacional de Educação, seja por se tratar de curso superior de tecnologia, fora do debate.
Vamos analisar um aspecto procedimental regulatório, a duração do ato institucional e dos atos autorizativos de cursos presenciais que estão “desobrigados” da preocupação efetiva com impactos pelos seus resultados insatisfatórios. Um ato de recredenciamento presencial em renovação demora, é sabido, alguns anos do seu protocolo até a publicação de alguma ação efetiva pela SERES. Portanto, entre o pedido de recredenciamento e a conclusão do processo podemos ter aproximadamente dois anos. Na eventualidade de um resultado insatisfatório, conceitos 1 ou 2, é iniciado um Termo de Saneamento de Deficiências, que pode ser, a escolha da IES, com prazo de um ano. Ao final deste, aguarda-se outros dois anos para a conclusão da nova avaliação. Ou seja, é plausível que uma instituição presencial, após o início do seu processo de recredenciamento, caso constatada deficiência, leve cinco anos para um resultado efetivo de sanção. Já o que está em proposição é que para a modalidade a distância, o simples fato de não ter o Conceito Institucional igual ou maior a quatro, sua oferta seja interrompida imediatamente e sua Mantenedora fique por dois anos impedida de nova solicitação. Essa separação não é apenas irracional, é abusiva, arbitrária, injusta.
De tudo isto deriva nosso outro apontamento, não há, para o mercado de trabalho, para os alunos e nem mesmo para as instituições de educação superior, o parâmetro oficial do que é oferta de qualidade, não há um referencial de qualidade, didático-pedagógico, tecnológico, metodológico ou qualquer outra rubrica pedagógica que informe para a sociedade o que é um curso presencial de qualidade ou um curso EAD de qualidade. Vale aqui o senso comum de que qualidade “é aquilo que todo mundo diz que sabe, mas ninguém consegue dizer como se faz….”
E como não criticar o ENADE como “grande parâmetro de qualidade” dos cursos de graduação no Brasil? Esta que foi a hipótese inicial do Ministro da Educação para suspeitar da qualidade dos cursos de graduação ofertado na modalidade EAD não é, nem de longe, a melhor fonte de percepção do real impacto de um curso superior na sua localidade de oferta, ou seja, na sociedade.
As grandes empresas, através de seus sofisticados mecanismos de seleção, contratam os melhores talentos. Os pequenos empresários, após os primeiros meses de trabalho identificam os colaboradores que não atendem à expectativa. A dificuldade de alocação de trabalho e a falta de iniciativa em empreender evidenciam o graduado que foi frustrado em seu curso para falta de eficiência nas competências e habilidade que desenvolveu ao longo da sua graduação.
Não é uma prova de conteúdo que mensura a eficácia real de um curso de graduação. A aceitação dos seus egressos pelos contratantes, a capacidade de empreender e se estabelecer socioeconomicamente ou a combinação de ambos que nos permite apreender as instituições e cursos que realmente entregam para a sociedade alguém bem formado. Mas este é um tema que está longe do debate, dos instrumentos de avaliação e indicadores das IES. No máximo temos um ou outro indicador de onde deriva o famigerado CI. Mas, de fato, são indicadores cuja definição e resultado em quase nada importam para a vida regulatória das IES.
E o que dizer dos polos? “Ah, mas tem polo em açougue!!!”; “Tem polo em salão paroquial!!!”; “Tem polo em sobreloja de padaria!!!”. Se ficamos até cansados de ouvir frases que eram ditas nos velhos tempos da SEED (meados da primeira década deste século), por outro, vemos uma preocupação com infraestrutura e capacidade de investimento em imóveis, mas não uma discussão sobre metodologia, inovação pedagógica, construção de trilhas de aprendizagem realmente capazes de gerar interação entre os entes envolvidos na aprendizagem com o objetivo de um bom desenvolvimento de competências e habilidade. Não há como ser menos sincero: discussão de polos é uma discussão velha. Não importa quantos polos e onde estão os polos de uma IES, importa o egresso que ela está preparando. Não é numa sala de aula, seja onde for, com o tamanho que for, nem num laboratório frio e distante que o aluno vai realmente aprender. Ele vai aprender quando receber a oportunidade e entrar em contato real com a profissão para a qual está se preparando. E aqui, desde 2017, nos atos normativos que estão sob fortes críticas, temos uma solução interessante: os ambientes profissionais. Elementos já sumariamente descritos na Portaria Normativa Nº 11/2017, que deveria ter detalhado a definição contida no Decreto Nº 9057/2017, dão uma pista de um local onde o desenvolvimento pode ser efetivo. Os ambientes profissionais são locais dentro de empresas e organizações onde há a necessidade do profissional em formação e que podem receber os alunos para atividades práticas, encontros, estágios e tantas outras oportunidades de crescimento. Não é arrogante dizer que está fácil superar o debate dos polos, basta olhar e enxergar as ricas oportunidades que os ambientes profissionais, lá onde o aluno reside e deseja trabalhar após a sua diplomação, para todas as profissões, podem ser explorados. E nem vou aqui discorrer que este já é, por si só, um fácil mecanismo de empregabilidade.
Considerações Finais
Abrimos este conjunto de notas e comentários com os equívocos que acreditamos que foram cometidos pelo Ministro da Educação Camilo Santana. Discorremos em seguida, com base na consulta pública realizada pelo seu Ministério, sobre os equívocos cometidos se houver a simples restrição de cursos com base em Diretrizes Curriculares Nacionais e/ou em CI-EAD. Nossos apontamentos também colocaram dúvidas sobre outros temas em debate, como a eficácia real do ENADE como conceito de qualidade, as possibilidades de manobras regulatórias para protelação dos atos autorizativos independentemente de modalidade, e o quanto é obsoleto o debate sobre oferta a partir de polos. Mas qualquer reflexão, quando possível, não deve ficar nas críticas, há sempre o dever da proposição de soluções. Proposições que não precisam “vencer” o debate, servirão como pontos de apoio para que o debate avance e, caso os signatários dos órgãos reguladores, ou o próprio Ministro, ouçam, sirvam para apoiar medidas regulatórias eficazes para a preservação da qualidade da oferta de cursos de graduação.
Vejam o que propomos:
- Quaisquer medidas regulatórias devem ocorrer por cursos e IES e não por modalidade;
- Revisão da Portaria Normativa MEC Nº 20/2017;
- Revisão da Portaria Normativa MEC N° 11/2017 para melhor adequação do uso de polos, suas exigências e estímulo para o uso de ambientes profissionais, reafirmando estes como locais de atividades práticas;
- Aplicação dos Instrumentos de Monitoramento/Preparação/Sanção já instituídos na Portaria MEC Nº 315/2018;
- Criação de um amplo Programa de Monitoramento, baseado em um mix de indicadores (ENADE/CPC/IGC/CC/CI), independente de modalidade, com o objetivo de supervisionar a baixa qualidade;
- Criação do Cadastro do Concluinte, com base no CAGED, eSocial e dados da Receita Federal, mensurando empregabilidade e empreendedorismo dos egressos do ensino superior, balizando não só a qualidade das IES como também políticas de financiamento estudantil.
Não é preciso discorrer sobre a falácia de que o problema da qualidade está na modalidade. O simples fato de um curso ser presencial não lhe garante mais qualidade, garante que, se ocorrer somente nesta modalidade, a oferta será restrita a locais de maior densidade demográfica, seu acesso será por poder econômico, pois com quantidade menor serão com mensalidades maiores, serão resultantes da ação do professor “em sala de aula fechada”, sem que necessariamente a aula prática de laboratório, a discussão, a qualidade efetiva da oferta foram preservados.
O padrão decisório contido no Marco Regulatório de 2017 (PN MEC 20/2017) pode sim ser objeto de discussão e remodelação, aplicando severidade para IES que tenham oferta comprovadamente sem qualidade, coibindo manobras regulatórias protelatórias e estabelecendo ritos céleres para que bons resultados sejam incentivados. O incentivo não precisa ser somente por “medo do banimento”, mas pode ser pela maior autonomia para expansão de vagas, de locais de oferta, de realizações de empregabilidade e tantas outras possibilidades.
A tipificação dos ambientes profissionais nos atos normativos também pode avançar, permitindo neles parcerias para encontros presenciais de aulas teórico-práticas, atividades de extensão, desenvolvimento de trabalhos de conclusão de cursos e todas as oportunidades de aprendizagem significativa, desenvolvimento de competências e habilidades e até mesmo a apreensão de novos conteúdos.
E para os que querem enganar a sociedade, os que não estão preocupados com a sua responsabilidade social na formação de profissionais sem a devida qualificação, reivindicamos apenas a “letra da lei”, ou melhor, dos atos normativos. O Decreto Nº 9235/2017 e a Portaria MEC Nº 315/2018 possuem todo o rito processual e até as formas de denúncias para punição de quem não leva educação superior a sério. Há ali os mecanismos de monitorar, acompanhar e punir quem deve ser punido. E caso os signatários do Ministérios acreditem que há uma “bandalheira”, ótimo, que seja criado um amplo Programa de Monitoramento, não com base numa só perspectiva míope, mas com base em todos os dados, indicadores e informações que o poder público já dispõe.
Por fim nossa proposta mais ousada, trabalhosa, mas aquela que acreditamos ser a medida de impacto de longo prazo que preservará os interesses da sociedade: com base no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados e eSocial, obviamente com alguma atualização dos seus campos de coletas, ou ainda, com base em dados sobre empresas por parte da Receita Federal, é possível se criar um Big Data capaz de avaliar as IES naquilo que efetivamente elas devem para a sociedade, a eficácia dos cursos que oferecem. Empregabilidade e empreendedorismo são os fatores da vida real que nos dirão o que a “faculdade fez pelo aluno”. Alguns colocarão esta proposta no campo da desconfiança sobre nossa privacidade. Num país com a Lei Geral de Proteção de Dados já consolidada, com um Ministério Público atuante, diríamos que este perigo é muito menor do que o representado pelas grandes corporações internacionais de dados já existentes.
Esperamos que este conjunto de notas tenha ajudado o leitor no percurso da reflexão sobre os erros que podem estar em curso pelo Ministério da Educação e na percepção que há alternativas. Que nossas notas não “vençam” porque as propostas foram aceitas, mas que sirvam para o avanço da educação superior de qualidade. Se erramos nas propostas, que tenhamos proporcionado uma discussão que leve ao acerto, ainda que com nenhuma das ideias aqui presentes.